segunda-feira, 25 de janeiro de 2010


Texto publicado no suplemento Guesa Errante do Jornal Pequeno




Rodrigues Marques: do maravilhoso ao cruel
 “A geografia do cérebro comporta histórias de nível mais elevado do que os que povoam o chão de nossa vizinhança.”
(Rodrigues Marques)
Thania Damasceno*
Osmar Rodrigues Marques foi um escritor ativo, que além de escrever constantemente, promovia eventos literários. Nasceu em Caxias, município do Maranhão, no dia 23 de janeiro de 1929. Na sua terra viveu a infância e publicou seu primeiro conto, aos doze anos de idade. Sua família era humilde -  a mãe era doceira e dona de casa e o pai, marceneiro e apicultor -  e era composta por mais quatro irmãos. Aos 21 anos mudou-se para o Rio de Janeiro, com o intuito de alcançar um curso superior. Lá, apesar das dificuldades financeiras, superadas também com o apoio do irmão, conseguiu empregar-se e formar-se em Direito.
Mudou-se em 1968 para Niterói, local em que viveu até sua morte, em 26 de agosto de 1999. Trabalhou no Tribunal de Justiça como chefe de protocolo da corregedoria de justiça do Rio de Janeiro. Teve quatro filhos legítimos e três fora do casamento. Pouco antes de falecer, separou-se da esposa por curto período, vivenciando um romance com outra mulher. No entanto, quando do início das limitações geradas pela doença que o afligiu, já estava novamente na convivência da família, sendo pela mesma amparado até seu último olhar sobre a terra.
Possuidor de um espírito alegre, adotou o estilo de vida carioca, tornou-se amante do samba, e naqueles ares foi que sua vida literária se efetivou e onde também conheceu outros intelectuais, como a escritora Dinah Silveira de Queiroz - eleita em 1980 para a Academia Brasileira de Letras - que se tornou sua admiradora e amiga. Manteve contato também com a escritora Lygia Fagundes Telles, sendo a mesma uma influência contemporânea em sua obra. Cultivou grande amizade ainda como o poeta Déo Silva, seu conterrâneo.
 Rodrigues Marques atuou como jornalista, contista, romancista e novelista. Seus trabalhos foram todos escritos em prosa, contrariando a tradição de ter nascido em uma cidade que frutifica poetas, embora a poesia impere nas suas palavras não versadas. É patrono da cadeira de número 10 da Academia Caxiense de Letras.
O escritor caxiense enveredou também pela área das artes plásticas, criando, inclusive, algumas das capas de seus livros, como nas obras “Julieta, coisa e tal” e “De como José encontrou o mar e, ajoelhado, esperou as gaivotas”, trabalhos esses que podem ser incluídos numa estética modernista. A partir de 1956 envolveu-se em movimentos literários, organizando o Festival de Poetas Inéditos (Rio de Janeiro), fundando ainda a Editora Caminho. Foi incluído como verbete na reunião de biografias “Brasil e brasileiros de hoje”, de Afrânio Coutinho. Esteve em Caxias pela última vez em 1998, pouco tempo antes de falecer devido a complicações no fígado.
Como Dinah Silveira de Queiroz o apelidara, o contista autor de “Noite sem Limite” era um verdadeiro “papa-prêmios”, pois sua intensa dedicação ao mundo das palavras e da arte lhe rendeu a oportunidade de receber inúmeras láureas, tais como os prêmios: Orlando Dantas - IV Centenário do Rio de Janeiro; Graça Aranha (São Luís - MA); Ficção do Banco Regional de Brasília; Ficção do Governo do DF; Prêmio Adelino Magalhães (Rio de Janeiro) e o Prêmio Romance do Governo de Goiás, dentre outros.
Apesar de bastante premiado e dono de uma prosa acessível e de sucesso na geração que o acompanhou, esse caxiense radicado no sudeste do país permaneceu na marginalidade literária, sendo pouco conhecido atualmente, como se o seu nome não tivesse sido forte o suficiente para perdurar por mais tempo, o que, para um escritor tão sensível à vida que o cercava, vem a ser uma evidente injustiça.
Seu estilo é facilmente reconhecido, sendo dotado de uma linguagem fluida, descritiva, que passeia por cenas do cotidiano, sejam elas reais ou fantásticas. É fácil perceber no autor a intensa ligação existente entre sua escrita e o mundo que o rodeia. Embora sua literatura apresente traços do realismo mágico, os nomes e as referências aos lugares são frequentemente reais.
O início de sua obra apresentou a existência cotidiana e verossímil de personagens reais e característicos, em que o leitor pode reconhecer rapidamente uma tia, um vizinho ou um comerciante importante que vive verdadeiramente em cidades interioranas. A vida simples, vagarosa e miúda das cidades pequenas é um dos cenários mais constantes nas páginas de seus livros. Caxias, sua terra natal, e o Maranhão, na pele da cidade de São Luís, são descortinados aos olhos vivos do leitor. O Rio de Janeiro também figura entre os cenários das suas narrativas.
Rodrigues Marques chega a ser quase absolutamente fiel na composição do romance “Julieta, coisa e tal”, que se passa justamente em Caxias, denominada de “Princesa do Sertão”. O autor deu vida a personagens verídicos, como a própria protagonista da história, cujo nome ele conservou, embora negasse ser a sua Julieta a mesma Julieta que lhe agradeceu por ter sido homenageada através das páginas dos seus livros, quando Marques realizou o lançamento desse livro na sua cidade natal.
O livro retrata tão bem alguns fatos ocorridos na localidade que se tornou fonte para estudos historiográficos, pois a pensão “Casa Amarela”, onde Julieta mora, era uma conhecida casa de prostituição, hoje extinta. Acontecimentos como o que experimentou a personagem Maria Gorda, em que a mesma incendiou o próprio corpo devido ao fato de, sendo prostituta, ter tido a infelicidade de ter se apaixonado, embora aparentem ficção, foram realmente vivenciados pela sociedade caxiense no passado.
O cotidiano das prostitutas da região foi abordado de maneira singular na sua obra, sendo o escritor fiel aos fatos, descrevendo a situação de separação social em que elas viviam, estabelecendo também o contraste que as fazia serem ao mesmo tempo damas da noite e esquecidas pelos homens que compravam suas companhias femininas: “O enterro foi simples. Poucas pessoas. Somente algumas mulheres da Casa Amarela. Nenhum homem. As mulheres se revezavam nas alças do caixão. Julieta pensou: que destino; a vida inteira debaixo dos homens e, no fim, nenhum para acompanhar o enterro, ajudar a carregar o caixão”.   “Julieta, coisa e tal” não é apenas um romance nascido de uma mente astuta, mas o retrato de uma sociedade interiorana, pois nele se vislumbra nitidamente que o escritor escreveu o que conheceu de forma vívida.
Transitando entre o cotidiano verídico e o mundo maravilhoso, Rodrigues Marques não pode ser enquadrado em nenhuma dessas categorias. Seus romances e contos realistas contam sempre com uma pitada de magia, de inverossimilhança. O exagero da realidade, como no conto intitulado “Dilúvio”, que remete às enchentes, é um bom exemplo de como ele maneja a fronteira entre o real e o irreal. Outra característica sua é a presença de um humor anedótico, que brinca com a existência de pessoas simples e comuns, surpreendidas pela banalidade e o absurdo que a vida lhes oferece.
Esse humor é constantemente encontrado nos seus contos, nos quais o autor migra com frequência para estilos diferentes de escrever. Num momento ele nos apresenta o cotidiano amargo, seco, oriundo da vida simples. Noutra abordagem ele já nos mostra o quanto de lúdico reside em tudo isso, como é possível perceber no conto “O homem que perdeu um peru”. Na obra “O sino de Madagascar”, por sua vez, utiliza a repetição de personagens, como se os mesmos pertencessem à realidade. Marques ainda viaja pelo surreal, através de uma narrativa desconexa e absurda, repleta de poesia e beleza.
Essa linguagem está presente em quase todos os contos publicados em “Eles pensam que eu tenho medo de ter medo” e em “De como José encontrou o mar e, ajoelhado, esperou as gaivotas”: “José de Ribamar apalpou o embrulho que o acompanhava e retirou dele um velho jornal lido e relido durante muitas tardes e muitas noites. Abanou-se com ele e as letras voaram das páginas. Como milhares de formigas, começaram a caminhar pelo seu corpo. Era um contínuo atropelar de sílabas – formigas que se encontravam formando palavras só de consoantes, só de vogais. Aflito com as cócegas que as letras do jornal produziam no seu corpo, José de Ribamar sacudiu-se como um cavalo que houvesse rolado muito tempo na areia e atirou, novamente, no jornal, as letras dele fugidas.” Seus personagens são na maioria pessoas de classe média, casais mastigados pelo tempo, mulheres e homens cheios de paixão, presos numa vida insólita em que as coisas simples são as impressões colhidas pela mente observadora e captora da vida que circula, como se Rodrigues Marques fosse um deus que observa de longe e brinca com aquilo que vê.  
Em “Duas mulheres de Terramor, o estilo do autor se consolida na busca pelo maravilhoso e pelo poético. Nas metáforas vivas criadas por ele, é possível capturar a vagarosidade da vida, a esperança de que algo importante possa algum dia acontecer. Antuza, mulher jovem, aguarda o dia em que “O Homem Que Trouxe As Bandeiras” aparecerá para finalmente pedi-la em casamento, enquanto o “Noivo” sonha em um dia poder agradar o coração da moça, que vive solitariamente com a mãe em um casarão onde as vacas pastam no terceiro andar. Artemiza, velha, e contando apenas com a companhia da sua filha Antuza, anseia por um amor carnal jamais alcançado, comprando as carícias de um amante, “O Rapaz De Vinte Anos”. O contraste pintado pelas mãos habilidosas da imaginação do escritor fez a filha, jovem e desejada, passar a vida sentada em uma cadeira de balanço, sob uma amendoeira, a divagar preguiçosamente, enquanto a mãe, envelhecida sem amor, viúva de um casamento arranjado que nunca lhe deu felicidade, vagueia ansiosamente à procura do jovem que ela julga capaz de satisfazer sua carência.
A virgindade de Antuza é guardada para um homem que ela não conhece, mas que é conhecido em toda a cidade por ter muitas mulheres em sua cama e por desvirginá-las sem dor, fazendo uso de mel de abelha. Quando o “Noivo” foi finalmente escolhido para libertar a noite que a jovem aprisionava no casarão, apesar da vida que havia dentro do cômodo, quando ele abriu as janelas e percebeu que não havia sequer poeira e que tudo estava absolutamente limpo, a perda da virgindade dela é coroada com a morte dele, que realizava aquele desejo antigo sem felicidade, por saber que verdadeiramente não possuía Antuza, que só sabia pensar no “Homem Que Trouxe As Bandeiras”. O maravilhoso, o absurdo e o cotidiano simples se misturam na narrativa.
Ao mesmo tempo em que fatos surreais acontecem – como o morto que é oferecido pela viúva para ser chibatado por aqueles a quem o mesmo devia dinheiro em vida, e o nevoeiro que tomou conta da cidade de tal forma que as pessoas não se enxergavam –, a monotonia da rotina toma conta dos dias: “Fazia um balanço: Terramor da sua infância em nada mudara. Fisicamente. As mesmas ruas, o mesmo rio com velhos barcos descoloridos, sempre as mesmas caras morenas, cheirando a madeira. A sua vida também, mudara pouco: quase sempre igual”. E, ainda que “Terramor” represente uma cidade imaginária, permanece repleta de elementos que nos remetem às origens do ficcionista, tais como descascar macaxeira e chupar pitombas, por exemplo.
A juventude de Antuza era desperdiçada nos sonhos, enquanto a velhice de Artemiza se esvaía através dos mesmos. A jovem, ao final da narração, perdidas as esperanças de sua existência frustrada de acontecimentos sublimes, entrega-se placidamente a uma morte dolorosa, sob as patas das vacas que pastavam no terceiro andar do casarão, justamente quando aquele a quem ela esperou a vida toda finalmente sai em seu encalço. “Como sempre suspeitara, a morte era ir se deixando pelo caminho, como alguém que carregasse areia num saco furado.” Contraditoriamente, Artemiza, a velha, de pele já enrugada e murcha, abandonada pelo jovem amante o qual ela pagava o amor com as vacas que criava, em vez de entregar-se ao fim, acredita estar grávida, sente enjôos e vê o ventre crescer paulatinamente – fato que Antuza atribui à presença de vermes em seu organismo.
Então sua vida se torna uma constante procura, um vagar que não perde a esperança de alcançar o que deseja. “Enquanto Antuza enfrentava a dor – a dor seca que a fazia encolher-se sob o lençol – Artemiza perambulava pelas ruas do outro lado da cidade, o ventre cada vez aumentando mais, os nove meses já muito ultrapassados, beirando um ano [...]”. Artemiza era prenhe da própria existência que não desistia de existir. Nem mesmo a velhice que lhe roubava a força era capaz de tirar-lhe o fôlego da vida.
Rodrigues Marques foi um homem que se dedicou ao amor pela literatura. Escreveu com sangue, oferecendo sua alma aos leitores sedentos de vida, doando-nos sua mente em cada página. O simples e o complexo se copulam em sua obra, parindo um mundo novo, ao mesmo tempo maravilhoso e cruel.

Bibliografia
 Noite sem Limite (contos, Rio de Janeiro, 1954).
Chão do Inferno (romance, Rio de Janeiro, 1957).
Os quatro filhos do Papa (contos, Rio de Janeiro, 1959).
Linha do Vento (novela, Rio de Janeiro, 1963).
Os recém-casados ou Amor de cama e mesa (novela, Rio de Janeiro, 1968).
Geografia do vão território (romance, Brasília, 1972).
Duas mulheres de Terramor (romance, Rio de Janeiro, 1976).
O sino de Madagascar (contos, Rio de Janeiro, 1976).
De como José encontrou o mar e, ajoelhado, esperou as gaivotas (contos, Rio de Janeiro, 1981).
Julieta, coisa e tal (romance, Rio de Janeiro, 1986).
Eles pensam que eu tenho medo de ter medo (contos, Rio de Janeiro, 1995).

*Contista, graduanda em História pela Universidade Estadual do Maranhão - UEMA (Caxias).





Um comentário:

  1. Como filho de Rodrigues Marques, gostaria de registrar todo a minha gratidão e admiração pela brilhante resenha. Parbéns!

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